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Meu relato de parto domiciliar



De olhos fechados.

Foi assim que passei boa parte das 10h do trabalho de parto que aconteceu aqui em casa no último dia 16 de Março e trouxe a pequena Lia para a minha jornada. Para a família, que estava no andar de baixo, as horas de silêncio alimentavam milhões de hipóteses mentais sobre o que poderia estar acontecendo lá em cima a portas fechadas; e foi justamente quando atingimos o extremo oposto – os maiores gritos que já dei nessa vida; que ela chegou aos meus braços, aliviando todos que já se encontravam com a orelha atrás da porta e puderam finalmente rir e chorar a chegada desse novo ser.

Tudo começou no final da tarde de uma sexta-feira (15/03), quando a minha parteira chegou de mala e cuia na cidade para a nossa última consulta. Comecei a sentir algo muito parecido com uma cólica menstrual. Foi curioso sentir de novo essa sensação depois de 9 meses sem o ciclo - e esse era o primeiro sinal de que o trabalho iria evoluir. Eu ainda estava meio perplexa com a sincronicidade das coisas, tudo estava se desenrolando num timing perfeito: 40 semanas, exatamente na data provável e ainda, com as condições externas totalmente alinhadas da forma que planejei: família presente, tudo organizado, etc. Assim como a gravidez, o parto se revelou um lugar de muita magia e sintonia. O desenrolar da história me mostraria que isso ocorre não de uma forma romântica e previsível, mas de uma forma mística, transformadora – como tem que ser.

Caiu a ficha: veio a ansiedade e começou a ficar claro pra mim como mente e corpo iriam realmente precisar trabalhar juntas nos próximas horas, e que o termo “trabalho de parto” não era a toa. Tudo o que eu podia preparar já havia sido feito: os profissionais, o ambiente, as ferramentas; mas o que era realmente necessário para o sucesso dessa chegada era ultrapassar a barreira do que eu conhecia – era correr com determinação e confiança para esse abismo desconhecido. E ninguém podia fazer isso por mim, era preciso protagonizar, ir com medo mesmo.

Constatou-se 3,5cm de dilatação e nos preparamos para, na mesma noite, começar a abrir o campo para o parto. Fiz um banho com ervas que minha cunhada tinha me presenteado, nos alimentamos bem, e tive uma noite de muita cumplicidade e carinho com meu companheiro; depois fomos tentar dormir um pouco.

Lá pela madrugada de sábado (16) já não foi mais possível ficar deitada, a queimação da cólica tomava conta da área das costas até os joelhos; a parteira me explicou que esse era um chamado para que eu começasse a me movimentar da maneira que fosse mais gostosa e familiar para o corpo. No meu caso, essa chave era o Yoga, então pratiquei uma sequência intuitiva de asanas que acredito ter durado uns 30 minutos. Em seguida, percebi que a lua se apresentava no céu. Desde o início do acompanhamento pré-natal sabíamos que ela viria na lua crescente de março – e lá estava. Fomos então dar uma caminhada pelo vale para nos conectarmos com essa força tão feminina da natureza. Na volta da caminhada desceu um pouco de sangue e isso era um sinal de que o colo do útero estava se abrindo cada vez mais. Senti de tomar um banho quente e a equipe que me acompanhava sugeriu que a bola de pilates fosse junto – e lá fomos nós. Nesse momento,  lembro de pedir que trouxessem um café bem forte; tomei ele dentro do chuveiro mesmo e, ao sair, uma pequena cachoeira de água desceu pelas minhas pernas: era a bolsa que rompia.

Fizemos uma nova avaliação: 5 cm de dilatação. Esse era o momento em que entrávamos no chamado “trabalho de parto ativo”. A parteira então percebeu que eu ainda estava “muito voltada para fora” e que era necessário um momento de concentração e introspecção para que eu me conecta-se genuinamente com a minha força pessoal e com as minhas intenções para as próximas horas. Pedi alguns momentos para meditar sozinha e isso foi essencial.

Dali há um tempo a equipe entrou e começou a encher a banheira – enquanto eu me soltava com a ajuda do tecido acrobático. As contrações começaram a ficar bem fortes a partir desse momento – era uma cólica aguda que ia e vinha – e para passar por esse momento, foi necessário inspirar e exalar muito profundamente. A única posição possível para esse momento foi a de quatro apoios e, ao mesmo tempo, ganhei uma massagem na lombar que ajudou muito a passar pelo ápice da dor.


Quando não pude mais sustentar a posição anterior, a parteira sugeriu que entrasse na água, e assim fiz. Acredito ter passado umas 4 horas dentro da banheira, alternando de forma bem dinâmica posturas como cócoras, sentada, 4 apoios e de lado; ora era silêncio e concentração, ora vinha a vocalização de sons muito instintivos; momentos de dor intensa, com outros de prazer e profundo relaxamento. Com o aumento natural da ocitocina no sangue veio um estímulo de limpeza muito forte. Senti um grande enjoo e com ele, vieram os vômitos. Na fase final do encaixe do bebê a sensação é de querer ir ao banheiro, e fui. Aparentemente, era preciso me esvaziar por completo para que o novo pudesse chegar. Nessa fase fiquei realmente exausta. Muita coisa passava pela cabeça. Luz e sombras. Motivação e sabotagem, lado a lado. Lá fora o tempo alternava entre sol e chuva. Eu respirava tão forte que meu rosto chegada a formigar. Queria que acabasse logo, queria ver a minha filha e eu já não tinha mais energia.


Me contive o tempo todo para não deixar o medo e a dúvida crescerem em minha mente; mas em certo momento olhei nos olhos da parteira e disse: “Eu não sei mais o que fazer”. E ela me respondeu com um sorriso maternal: “Então agora você está pronta.” Chegamos na dilatação total: 10 cm; e entrávamos, finalmente, no período expulsivo - a minha força seria ainda mais determinante agora. Meio tonta, lembro de alguém colocar tâmaras na minha boca, e como foi importante essa dose de energia para os momentos que se seguiriam.

A ideia era ir para o tecido, mas eu já não tinha força nos braços e pernas para me sustentar, tudo tremia. Fomos pra cama e fiz força algumas vezes abraçada aos meus joelhos. Nesse momento, constatou-se que a bebê não estava conseguindo encontrar o melhor lado para fazer o giro e sair: numa contração ela tentava sair pela direita, na outra pela esquerda. Da mesma maneira em que naquele momento eu precisei de ajuda e consegui pedir, observou-se também que seria necessário ajudar a Lia fazendo uma manobra – bem dolorida – dentro do canal vaginal. Pronto, agora ela estava corretamente encaixada. Seriam os momentos decisivos.


Meu companheiro sentou na cadeira de balanço do quarto e eu me coloquei de cócoras entre as suas pernas, de maneira que eu conseguisse um apoio bem firme para os braços; os pés estavam totalmente aterrados no chão e isso me trouxe a firmeza necessária. Levei algumas contrações para entender onde fazer força e como respirar. Minha tendência era colocar tensão nos braços e me puxar para cima, mas era necessário que eu não fugisse e fizesse justamente o movimento contrário – mandasse toda a energia para baixo. E como era difícil fazer força no auge da dor, mas lá fomos nós embalados por sons guturais que eu nem sabia que era capaz de fazer; e depois de umas 5 contrações vimos a cabecinha dela – junto com a maior ardência do mundo, o tal “círculo de fogo”; mais uma contração e saíram os ombrinhos – a sensação era de que eu realmente ia partir ao meio. Mas quando vimos aquele serzinho ali, do lado de fora, perfeito, saudável, quentinho... Foi inacreditável: risos, choros, tudo ao mesmo tempo: amor, pureza, entrega, alívio.


Sentimento inexplicáveis em sua maior intensidade, pois para parir é preciso ir além – dos seus próprios limites, da razão, do controle, do medo; e somente quando chegar nesse lugar onde já não se sabe de nada, é possível receber a bênção do novo: morrer para nascer uma filha, um pai, uma mãe e toda uma aldeia.

Lia Awêry chegou e a gratidão de todos nós por essa vida está impressa em seu próprio nome – Awêry significa obrigado em Patxohan, língua nativa dos índios Pataxós da Bahia, terra fértil de muitos sonhos que culminaram em seu nascimento. Salve os guardiões da floresta, salve a força da natureza dentro de toda mulher e todo homem; que permaneçamos fieis e conectados aos nossos corações e coloquemos nossas mentes e mãos a serviço do amor, da união e da evolução. Os maiores agradecimentos do mundo aos que atravessaram esse portal comigo: família universal, equipe - Marilanda Lopes e minha enfermeira irmã Carol, meu amor e a pequena Lia que já chegou trazendo de presente tantas oportunidades de sermos ainda melhores e mais fortes.



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